Das multas

Há, inegavelmente, inúmeras espécies de multas: federais, estaduais e municipais; multa civil; multa compensatória; multa convencional; multa fiscal; multa moratória; multa trabalhista, etc. Todas elas, no entanto, se resumem, pode-se dizer, a três espécies de multa: contratual, administrativa e penal.

Antes de mais nada, um contrato, celebrado por particulares entre si, ou com órgãos estatais, pode estabelecer multa para o caso de descumprimento: um contratante se compromete a fazer ou deixar de fazer alguma coisa sob pena de pagar ao outro determinada quantia caso não venha a cumprir sua obrigação, ou venha a cumprí-la fora do prazo. Às vezes uma empreiteira assina contrato com o Estado, ou com qualquer particular, comprometendo-se a concluir a obra num certo prazo, findo o qual, pagará multa de dez salários mínimos por dia excedente. E assim por diante. Esta é a multa civil, ou contratual.

Temos, também, a multa penal, prevista expressamente no nosso Código Penal (art. 32). É aplicada pelo juiz, nos casos previstos em Lei. Isto porque, em certos crimes ou contravenções, estabelece-se a hipótese de pena de multa, ou substituição da pena de prisão por multa.

Finalmente, temos as multas administrativas, fixadas pelas autoridades administrativas, dentre as quais avulta-se, na época presente, a multa de trânsito.

Ocorre, porém, que a diferença fundamental entre as três espécies de multa não consiste apenas nisso.

Em se tratando de multa contratual, se o infrator resolver não pagá-la espontaneamente, a parte lesada só poderá recebê-la através de ação judicial. Terá que contratar um advogado e instaurar processo perante a Justiça, para se ressarcir do eventual prejuízo. Ou seja: finda a ação através de sentença do Juiz, passa-se à execução, intimando-se o devedor a pagar o valor respectivo, sob pena de penhora de tantos bens quantos bastem para solução da dívida e acessórios (custas, honorários de advogado, mora, etc.).

Quase a mesma coisa se aplica à multa penal. Esta só será imposta pelo Juiz após o término de uma ação penal. A ação penal só pode ser instaurada mediante denúncia do Ministério Público, que é o órgão público estatal detentor exclusivo do direito de oferecer denúncia.

Recebida a denúncia pelo Juiz, a ação penal vai percorrer todos os trâmites legais, e o Juiz só condenará o réu ao pagamento de uma multa no fim do processo. E o réu só se tornará devedor no dia em que a sentença transitar em julgado – ou seja, quando não couber mais recurso algum.

Fator importante é que, segundo estabelece nossa Constituição Federal, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV).

Em outras palavras: o Juiz vai mandar citar o réu, vai marcar data para interrogatório, vai ouví-lo, vai dar-lhe o direito de arrolar testemunhas, pedir perícias, juntar documentos, etc., e só vai proferir sentença após o processo estar completamente instruído, oferecendo-se oportunidade da mais ampla defesa ao réu e seu Advogado. Só depois de cumpridas todas as formalidades processuais e esgotados todos os recursos é que o Juiz poderá exigir o pagamento da multa.

Este é o processo legal, constitucional, ético e moral. Único possível num país genuinamente democrático.

Não é, porém, o que está previsto no novo Código de Trânsito.

Em se tratando de infração de trânsito a coisa muda de figura. O guarda, independentemente de qualquer formalidade, simplesmente considera o motorista infrator e tasca-lhe uma multa. O processo administrativo vem regulado nos artigos 280 e seguintes do Código, e a parte poderá recorrer, mas, antes de mais nada, terá que efetuar o respectivo pagamento, pois, segundo a Lei, “no caso de penalidade de multa, o recurso interposto pelo responsável pela infração somente será admitido comprovado o recolhimento de seu valor” (art. 288, § 2º).

Com isso, evidencia-se que o poder conferido pela Lei às autoridades de trânsito supera – em muito – o que está concentrado nas mãos do Juiz e de todas as demais autoridades administrativas, inclusive Secretários e Ministros de Estado – enquanto nas multas do Juiz e outras, o indivíduo se defende para não pagar, na multa de trânsito é o contrário: paga para se defender. Lá, só se cumpre a pena após o término do processo; aqui a pena é cumprida por antecipação. O que, se não é uma grande aberração, não deixa de ser, pelo menos, curioso.

Realmente a Lei ficou um tanto quanto confusa, porque o Presidente da República vetou o artigo 283, e o artigo 285 – sancionado e em vigor – fala no “recurso previsto no art. 283”, que, a rigor, deixou de existir. Ou, pelo menos, não se sabe qual é.

A única esperança que resta ao povo, por conseguinte, para fugir ao arbítrio e à violência de punições exageradas e desalmadas, está, sem dúvida alguma, na Justiça. Estamos antevendo a multiplicação incalculável de ações judiciais. Para tormento dos contribuintes e alegria dos advogados.

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