Dos analfabetos

Qualquer um que se detiver um pouco observando nosso patrimônio histórico vai descansar sua vista, deslumbrado, sobre o Convento da Penha. Trata-se de uma obra inabalável, de mais de 400 anos. Construído sobre uma enorme pedra, o Convento encanta os visitantes, tanto de longe, por seu aspecto mágico e maravilhoso, por suas linhas perfeitas, como de perto e por dentro: tudo bem dividido e acolhedor.

E no entanto, por incrível que pareça, não foi construído por engenheiros. Nem sequer por engenheiro. Porque naquela época não havia Faculdade de Engenharia.

Enquanto inúmeros edifícios – e outras importantes obras, como pontes, viadutos, etc. – planejados cuidadosamente e erguidos por engenheiros repletos de títulos e de cursos, desde então já desabaram às centenas, o Convento continua desafiando o tempo.

O mesmo se pode dizer de imensos e formidáveis prédios e palácios que existem na Europa: todos planejados e desenhados por construtores que nunca frequentaram uma Escola de Arquitetura.

Saindo-se da área da engenharia, podemos registrar que os maiores juristas do mundo, como Cícero, Ulpiano, Papiniano, Colatino, Modestino, Paulus, etc., nunca frequentaram uma Faculdade de Direito. Efetivamente, nos tempos dos romanos, quando houve a fabulosa criação da maioria dos institutos jurídicos que até hoje são estudados nas Universidades e debatidos nos Tribunais, não existiam Faculdades de Direito, pois os primeiros vestígios de uma Faculdade só apareceram em Salerno, na Itália, no século 12 depois de Cristo.

Ainda há poucos dias estive lendo a autobiografia do grande jurista Evandro Lins e Silva, na qual se confessa um autodidata, pois formou-se em Direito sem frequentar a Faculdade. Com toda simplicidade e sinceridade, o Grande Advogado diz claramente que só aprendeu Direito depois de formado. E acabou Ministro do Supremo Tribunal Federal.

No que se refere à Medicina, o quadro não é diferente: Hipócrates, considerado o Pai da Medicina, nunca esteve numa Faculdade de Medicina; tampouco Pasteur, Morgan, Röntgen e o casal Curie, e muitos outros. Pasteur, o descobridor da vida microbiana e criador da Microbiologia, que revolucionou a Medicina, só ingressou na Faculdade de Medicina, como membro honorário, depois de velho e laureado internacionalmente por suas pesquisas.

Tudo isso nos vem à mente quando observamos o estardalhaço que causou a publicação de dados do Tribunal Superior Eleitoral, segundo os quais o eleitorado brasileiro é constituído em cerca de 70% (setenta por cento) de analfabetos e semi-alfabetizados.

Realmente alguns entendem que o indivíduo, pelo simples fato de ser analfabeto, semi-analfabeto ou semi-alfabetizado, não tem capacidade de discernir entre o que é bom e o que é ruim para o País, existindo nele, portanto, a tendência para votar errado. Não deve ter direito a voto, e, muito menos, a ser votado.

Nada mais injusto. Nada mais irreal. Os brasileiros, além de sofrerem com a crueldade dos governos, que os deixam sem escola e sem possibilidade de estudarem – ou de concluírem seus cursos – ainda se sujeitam a pagar o copioso tributo de serem considerados inaptos para escolherem seus governantes.

O homem, por mais simples que seja, quando vota, reflete, com perfeição, aquilo que vai na consciência tranquila das multidões. Do seu coração, da sua inocência, da sua boa-fé, surge o sentimento de civismo, rasgando o véu do futuro.

A propósito, vale relembrar as observações de Ihering, o grande jusfilósofo alemão: “Que significa formação política de um povo? Significa o fato de o homem da rua poder fazer demagogia a todo instante? Que um sapateiro ou um alfaiate tenham de estar capacitados para poder criticar o estadista abalizado? Formação política do povo não significa, em minha opinião, outra coisa senão a compreensão correta de quais são seus verdadeiros interesses”.

Esse raciocínio de Ihering retrata muito bem a realidade. E a prova disto está em que vemos constantemente empresas de centenas e milhares de empregados, criadas e dirigidas por um proprietário analfabeto ou semi-alfabetizado. Com energia, bom-senso, espírito prático e perfeita visão das coisas, esses empresários colocam seus negócios rigorosamente em ordem, cooperando decisivamente para o desenvolvimento do País. Apenas trabalhando e produzindo, economizando, longe dos livros, sem manusear tratados e compêndios, criam riqueza e prosperidade, para sua família e para o País.

Aliás, bem apropriadas são as palavras de Jorge de Sena: “Hoje considera-se que há dois tipos de analfabetos. O analfabeto específico que é o homem que não sabe ler nem escrever, e o analfabeto funcional, que é o homem que sabe ler e escrever, que pode ter até diversos graus de educação e que, do ponto de vista cultural, é tão analfabeto, ou mais, do que o outro; mais, digo eu, porque perdeu a cultura popular, de experiência, de costume tradicional, etc., que o analfabeto de aldeia possui, e não adquiriu outra”.

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