Das penas

Até o advento da Revolução Francesa, em 1789, quando foi editada a primeira Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, os criminosos não tinham direito algum. Eram tratados sem dó nem piedade. O fato de ter cometido um crime redundava numa mancha que haveria de acompanhar seu autor (e sua família) pelo resto da vida.

Assim, ladrões recebiam uma marca, a ferro em brasa, para ficarem conhecidos por toda sociedade, enquanto vivessem, que haviam roubado; os que caluniavam, difamavam ou injuriavam, tinham a língua cortada; esquartejamentos, mutilações, olhos arrancados, torturas terríveis, morte na fogueira, na roda, desterro; condenações às galés (o condenado ficava remando durante anos e quase sempre morria antes de cumprir o tempo da pena). Ocasionalmente atirava-se o condenado às feras; muitos foram enterrados vivos.

Mulheres adúlteras ora eram mortas a pedradas, ora afogadas – e registram as crônicas que havia uma região na China em que a condenação consistia em serem mutiladas paulatinamente: o carrasco tinha que cortá-las em 200, 300, 500 e até mil pedaços – um dia cortava um pedaço dum dedo, no outro um dedo, a seguir outro dedo, e assim sucessivamente, por meses a fio.

A partir do século 18 iniciou-se amplo movimento internacional em favor da humanização das penas e das prisões, até que no final do século 19 o grande jusfilósofo alemão Franz von Liszt defendeu a ressocialização do condenado, que deveria ser o objetivo final da pena. Essa tese, adotada por todos os povos cultos do mundo, passou a ser tentada e aplicada especialmente no século atual, que ora se finda.

Desde então surgiu a “Penologia”, ou ciência da execução das penas.

Visando sobretudo à recuperação do condenado, a penologia moderna passou a recomendar, antes de mais nada, que o indivíduo, ao iniciar o cumprimento de sua pena, recomeçasse nova vida, sem se considerar o seu passado. Para isso não se deveria mencionar sequer o crime que havia cometido. Ao contrário do que ocorria nos tempos antigos, aquela “mancha” deveria ser apagada e esquecida, para que o condenado retornasse ao convívio social com nova personalidade, seguro e confiante de que era, agora, um cidadão de bem, livre de qualquer mácula, porque pagou sua dívida para com a sociedade, estando pronto para uma nova vida.

Nossa Lei das Execuções Penais, inspirada nesses mesmos princípios, proíbe taxativamente a divulgação de ocorrência que “exponha o preso a inconveniente notoriedade, durante o cumprimento da pena” (art. 198). Estabelece, mais ainda, que “cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei” (art. 202).

Com isso a Lei quer evitar a divulgação de ocorrências que se passam no interior das prisões e que sirvam para lançar um labéu no caráter e na personalidade dos detentos: humilhações, degradações, deformações, etc., como costumam aparecer em reportagens sensacionalistas.

O mesmo se dá com o uso de algemas em público, que só deve ser imposto em casos absolutamente necessários, por representar uma violência humilhante.

E foi exatamente orientada por tão elevados princípios, amadurecidos na consciência da humanidade, que a ONU editou suas “Regras Mínimas para o tratamento dos reclusos”.

Diante dessa série de raciocínios chega a ser estarrecedor o que se passa no nosso País no que se refere à execução penal. Autoridades da segurança pública, das mais respeitáveis, apresentam publicamente o condenado, designando-o como “assassino”, “latrocida”, “estuprador”, e, mais comumente, como “perigoso traficante”.

Isso, como não poderia deixar de acontecer, significa colocar uma marca na cara do indivíduo, estigmatizando-o e lançando-o definitivamente na senda do crime. O que nos faz lembrar Diderot quando dizia que “cospe-se num pequeno malandro, mas não se pode recusar uma espécie de consideração a um grande criminoso”.

Não é de surpreender, portanto, o aumento espantoso da criminalidade, e o número exagerado de rebeliões nas nossas cadeias e penitenciárias.

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