Das reformas constitucionais

Na Idade Média achava-se que “todo poder (ou autoridade) vem de Deus”, e, portanto, “só Deus tem o poder constituinte”. Era a teoria da Igreja. Foi somente no final do século 18 que Sieyès, seguindo as concepções de Rousseau, sustentou que “o poder constituinte pertence ao povo”, o que acabou sendo aceito pela própria Igreja, no curso da Revolução Francesa, através do aforismo que “a voz do povo é a voz de Deus”.

Na Revolução Americana e na Revolução Francesa, deu-se início à implantação definitiva desse princípio fundamental, que o povo é o titular do poder constituinte. Pois nesses dois importantíssimos acontecimentos históricos o próprio povo tomou nas suas mãos, com plena consciência, seus próprios destinos.

No dia 17 de junho de 1789 os membros dos “Estados Gerais”, convocados pelo Rei, se autoproclamaram “Assembléia Nacional Constituinte”, recebendo prontamente aclamação do povo, em nome de quem passou a legislar, desencadeando-se o processo revolucionário que culminou com a decapitação do Rei e da Rainha.

Essa é a verdadeira e legítima Assembléia Nacional Constituinte.

Assim, por exemplo, após a Revolução Francesa, ou a Revolução Russa, as correntes vencedoras assumiram o Poder no Estado, sem limitação alguma e, sem qualquer compromisso com a ordem antiga. Tanto assim que acabaram com a monarquia e deram origem a novos conceitos de propriedade, de representação popular e de direitos e garantias individuais. Mudaram tudo. Não deixaram pedra sobre pedra, na ordem política, econômica ou social.

O poder constituinte quando vem diretamente do povo, e cria o Estado, diz-se que é originário. Quando, entretanto, emana de uma ordem preexistente, fala-se em poder constituinte derivado.

O Congresso Nacional quando vota as emendas constitucionais, que às vezes alteram profundamente a Constituição, exerce o poder constituinte derivado. Ele tem a faculdade de promover essa “revisão constitucional”, de acordo com a permissão que lhe é conferida pelo próprio texto da Constituição, segundo as normas e formas ali previstas. Nesse caso o Congresso exerce, ao mesmo tempo, o poder legislativo e o poder constituinte: faz leis ordinárias e modifica a Constituição.

O poder constituinte originário é a última instância de decisão na ordem jurídica estatal. Não se subordina a limitações de Lei alguma, estando sujeito apenas às pressões populares, das classes sociais e aos valores morais e espirituais da opinião pública. Não se acha sequer vinculado ao princípio de harmonia entre os Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.

Já o poder constituinte derivado não pode ultrapassar a linha de fronteira traçada pela Constituição ou pelo órgão de onde advieram os seus poderes.

Isto tudo, entretanto, que faz parte da teoria constitucional mais pura e perfeita, e que vale para todos os países cultos e democráticos do mundo, parece que não é bem considerado no nosso País.

Se não, vejamos.

A Constituição brasileira, promulgada a 5 de outubro de 1988, foi recebida com as maiores festas. A própria Igreja, na época, ordenou que na hora da promulgação, os sinos tocassem de norte a sul do país, manifestando o júbilo do sentimento nacional. Com efeito, sofreu longa e sofrida tramitação no Congresso Nacional, que durou quase dois anos, porque era combatida violenta e apaixonadamente pelas forças conservadoras e reacionárias.

Essa Constituição foi designada pelo seu vibrante patrono, o saudoso Deputado Ulisses Guimarães, de “Constituição-cidadã”, porque vinha criar novos direitos e dar maiores garantias aos “cidadãos” e, por via de consequência, ao povo em geral.

Eis que um dos maiores avanços oferecidos pela nova Carta Magna relacionava-se à aposentadoria dos funcionários e trabalhadores em geral, que, por força de dispositivo constitucional, passou a ser, então, baseada no “tempo de serviço”.

Realmente há milhares de pessoas por esse Brasil afora, principalmente no interior, que trabalham 10, 20 anos sem Carteira assinada e sem qualquer contribuição para o Instituto, muitas vezes por ignorância, outras vezes por descaso do empregador.

Pois bem. Esse grande direito dos funcionários e trabalhadores foi de água abaixo. Hoje, após a promulgação da emenda constitucional nº 20, só se considera, para efeito de aposentadoria, o “tempo de contribuição”. Voltamos, por conseguinte, ao regime da Constituição de 1946, que já havia sido reformada pela Constituição de 1967.

Chega a parecer que democratas autênticos, exercendo o Poder constituinte derivado, se sobrepuseram aos limites traçados pelo Poder constituinte originário.

Aliás, já dizia o grande filósofo Aristóteles, 300 anos antes de Cristo, na Grécia antiga, que “onde as leis não constituem a instância suprema, pululam os demagogos”.

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