Direito dos povos

Diz o aforismo jurídico que “não basta ter direitos; é preciso poder exercê-los”. E só se pode exercê-los através de um processo. Esse processo, tanto no cível como no criminal, era rápido, sumário, veloz, nos regimes autocratas. Tinham, contudo, rito secreto. Não havia contraditório. A espada da Justiça descia implacável e sem apelação, de acordo com o livre arbítrio e o simples convencimento do Juiz.

A Revolução Francesa, ao instituir os direitos humanos e proclamar as liberdades e garantias dos cidadãos, abriu caminho para as notáveis transformações que se sucederam, especialmente as promovidas por Napoleão, poucos anos mais tarde, imitadas por todos os países, a seguir.

O processo tornou-se público, de portas abertas; todos começaram a ter direito a um advogado, que deveria acompanhar o andamento da ação, passo a passo; criou-se o contraditório, o duplo grau de jurisdição; a perícia única desapareceu. Aquele tipo de processo relatado por Kafka, em seu famoso livro, virou reminiscência histórica.

A ampla defesa incorporou-se como norma expressa, a todas as constituições democráticas, a partir de então.

Alguns lançam a culpa da morosidade da Justiça em cima do Judiciário. Mas já está na hora de se entender o problema em toda sua amplidão. Diz-se que as flechas da Justiça atravessam com facilidade os andrajos dos pobres, mas quebram-se no escudo de ouro dos ricos e poderosos. Muitos não compreendem que quem tem dinheiro, pode pagar a bons advogados, e os bons advogados sabem como utilizar todos os recursos da Lei – que são inesgotáveis, e às vezes alcançam tanto quanto a imaginação criadora de expedientes e manobras protelatórias tenha capacidade de engendrar e inventar nulidades – tudo rigorosamente dentro da lei.

Nosso Código de Processo Civil, apesar de ser uma lei recente, não trouxe nenhuma inovação importante, em comparação com o Código anterior.

É com esse ordenamento jurídico arcaico, anacrônico, inteiramente superado, que remonta a épocas e condições ético-sociais inteiramente diferentes das em que vivemos, que, contudo, ainda temos que distribuir Justiça.

Para acentuar a distonia, basta relembrar que somente dois institutos jurídicos funcionam adaptados aos novos tempos: o mandado de segurança e o habeas corpus. Têm, contudo, sua origem no direito anglo-saxônico. Não são produção romana. Diante das exigências da sociedade, e atendendo à provocação dos advogados, esses dois institutos têm aplicação cada vez mais intensa e extensa. Por que? Porque são remédios rápidos e eficazes. Substituem recursos, suspendem execuções, anulam ações, reabrem prazos, decretam o trancamento de ações, enfim, fazem o possível e o impossível, podendo até mesmo ser designados como “recursos dos que não têm recurso”.

O excesso de recursos e as ilimitadas preocupações em torno da livre defesa, vêm gerando essa morosidade espantosa, e matando o próprio direito.

O Juiz não concede direitos — não faz mais que declará-los, porque os reconhece pré-existentes.

O homem, em sociedade, tem direitos particulares que a natureza lhe deu como indivíduo, e direitos universais, que lhe são dados como membro de uma sociedade.

Platão dizia que significavam uma dupla maldição a necessidade e o excesso, argumentando que um bom Estado devia lutar contra ambos inimigos de sua felicidade (República, V, 47O). A abundância pode causar os mesmos estragos que a maior miséria.

Neste final de século, a sociedade assemelha-se a uma pequena embarcação no meio de violenta tempestade, jogada num campo magnético. A bússola, enlouquecida, mostra a agulha desorientada, oscilando de um lado para o outro.

Ainda acredito que haveremos, num futuro não muito distante, de colocar a legislação brasileira em níveis compatíveis com as exigências de uma sociedade dinâmica e criadora, como a nossa, realizando um trabalho de verdadeira terraplanagem jurídica, escoimando-a definitivamente de leis materiais e processuais ultrapassadas, arcaicas e obsoletas.

Já o Ministro Sydney Sanches, do STF, alertou: “Não podemos ficar na omissão, na obscuridade, na indiferença”.

Proclamava Fichte que: “Ser livre não é nada; fazer-se livre é o sublime.”

No dizer de Hermógenes, “quando é grande a nossa fé, Deus faz o milagre de transformar em flores os punhais que nos atiram” (Mergulho na Paz, 2Oa. Edição, Record, p. 121).

Os romanos criaram uma justiça estática; nossa missão é criar uma justiça dinâmica.

Nosso intangível direito não é nada mais do que perspectivas, possibilidades e imputações. A experiência mostra que todo direito finalmente se aniquila em conseqüência de possibilidades perdidas e por falta de energia. A crítica às idéias processuais não é nada mais do que uma crítica das idéias políticas.

Vale, sem dúvida, tanto para os indivíduos como para o povo, que todo Direito e portanto seu Direito, no fundo nada mais é do que um resumo de possibilidades e acusações em luta, que valerão como direito.

O direito do povo, portanto, o chamado “direito individual” oriundo do liberalismo dos tempos modernos, transformou-se em direito processual. O direito, em sua expressão material, só pode florescer, viver e manifestar-se através do processo, e o processo só é verdadeiro quando aquecido sob as luzes do liberalismo, de concepções filosóficas igualitárias e que olhem para a sociedade como um todo, baseadas em idéias fundamentais adaptadas aos fenômenos atuais.

Urge que partamos, sem demoras e sem vacilações, para a remoção das ruínas e dos escombros de um edifício que, majestoso outrora, muito nos abrigou, mas do qual, no momento, só restam recordações e saudades. O século 21 já nos bate às portas.

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