Dos crimes inafiançáveis

No Brasil existe o direito à fiança, desde antes da Independência, quando aqui se aplicava a legislação portuguesa. Após a proclamação da Independência, em 1824, o Governo, respondendo a uma consulta da Promotoria, esclareceu que continuavam em vigor as disposições sobre a fiança.

O Código de Processo Penal, em 1832, fixava as normas para concessão de fiança e os meios de que dispunha o fiador para perseguir o réu que fugisse, e não permitia a concessão do direito de fiança “aos vagabundos”.

Foi a partir da Lei 2.033, de 20 de setembro de 1871, que surgiram as tabelas, estabelecendo os limites máximo e mínimo para a concessão da fiança.

O legislador veio conceder ao acusado, em determinadas espécies de crimes, o direito de prestar fiança, que consiste em:

  1. a) efetuar o pagamento de certa quantia, a ser fixada pela autoridade policial ou pelo juiz; e,
  1. b) assumir o compromisso formal e solene de comparecer a todos os atos processuais para que seja intimado.

Nossa Carta Magna arrola dentre os direitos e garantias do cidadão brasileiro: “Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança” (art. 5º, LXVI).

Os artigos 323 e 324 do Código de Processo Penal arrolam as diversas hipóteses em que não será admitida a prestação de fiança.

A propósito, vale acentuar que em nossa legislação processual penal a fiança nunca foi um direito objetivo, mas, sim, meramente subjetivo. Tanto assim que se o Código de Processo Penal cria, por um lado, o direito de fiança, por outro lado, no artigo 324, retira esse direito, ou coloca-o à discrição da autoridade, ou seja, sujeito a critérios eminentemente subjetivos, quando diz taxativamente que não será concedida fiança “quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva” (art. 324, IV).

Além disso, ainda que o crime seja inafiançável, e mesmo ocorrendo prisão em flagrante, o Juiz poderá conceder ao réu o direito de liberdade provisória, caso verifique “a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a decretação da prisão preventiva” (art. 310 e seu parágrafo único, do Código de Processo Penal).

A Lei 7.780, de 22.6.1989, torna afiançáveis todos os crimes, ou pelo menos admite que se cobre fiança de todos os crimes, ao estabelecer, genericamente, o limite de vinte a cem salários mínimos de referência para a fiança nos crimes em que “o máximo da pena cominada for superior a quatro anos” (art. 1º da referida lei, que dá nova redação ao art. 325 do Código de Processo Penal).

Muitas pessoas ficam em dúvida quanto à aplicação desse dispositivo, especialmente no que se refere aos chamados crimes de caça de animais silvestres e outros, que são inafiançáveis. Alguns entendem que esta Lei é inconstitucional, porque a Carta Magna estabelece a inafiançabilidade de certos crimes.

Entendemos, entretanto, que muito sábia foi a Lei 7.780 ao fixar limites de fiança para “todos os crimes”, porque nessas hipóteses do chamado direito de “livrar-se solto”, se for arbitrada uma fiança, pelo menos o acusado de crimes “inafiançáveis” pagará alguma coisa. Do contrário, estamos frente a clamorosa injustiça: os acusados de crimes afiançáveis leves, ou menos graves, se sujeitarão a desembolsar às vezes vultosas quantias; já os de crimes inafiançáveis, graves ou gravíssimos, não: uma vez desatendidos os pressupostos da prisão preventiva, serão soltos sumariamente, independentemente de qualquer pagamento.

Ampliando, mais ainda, a faixa de poderes concentrados em mãos do Juiz – e mesmo da autoridade policial – o legislador ainda veio proibir a fiança “em qualquer caso, se houver no processo prova de ser o réu vadio”, e “nos crimes punidos com reclusão, que provoquem clamor público ou que tenham sido cometidos com violência contra a pessoa ou grave ameaça” (art. 323, IV e V). Estes, como se nota ao primeiro relance, são elementos vagos, imprecisos, sujeitos – pode-se dizer – ao arbítrio do julgador.

Surge, desde logo, como verdadeira incógnita, sujeita a interpretação arbitrária, a palavra vadio. À primeira vista seria o indivíduo sem trabalho, desocupado, que não faz nada. Segundo o dicionário, é aquele que “não tem ocupação, que vagueia, vagabundo, ocioso”.

Acontece que vivemos num País onde, pelas estatísticas oficiais, há cerca de 15% de trabalhadores desempregados. Isto quer dizer que, considerando-se apenas os trabalhadores inscritos no Ministério do Trabalho, destes todos, que constituem a força de trabalho atuante, viva, registrada, provada e comprovada, há 15% de despedidos, que perderam seus empregos. Nessa estatística não estão computados os que nunca tiveram emprego e que não se acham, portanto, fichados: tão-só os que eram empregados e passaram à condição de desempregados.

Como se calcula a massa trabalhadora brasileira em mais ou menos 40 milhões de assalariados, os 15% seriam cerca de seis milhões. Temos, portanto, sem dúvida alguma, umas seis milhões de pessoas vagueando pelas ruas, sem carteira assinada, sem emprego. Serão “vadios” esses indivíduos? Só o abuso e a prepotência poderão considerá-los tão injustamente.

É por este motivo que se lê constantemente nos jornais que a Polícia, quando se lhe dá na telha, sai pelas ruas prendendo a torto e a direito, tachando qualquer um, bastando mesmo que esteja sem documentos, como “vadio”. No meio de marginais viciados de toda espécie, vão rapazes e moças da maior honestidade, apenas porque tiveram a infelicidade de perder o emprego.

O direito à fiança fica, assim, mais sujeito a condições eminentemente subjetivas, do que objetivas.

Resta evidente que o que o legislador deu com u’a mão, tomou com a outra, e a fiança, entre nós, mostra-se um direito vago, impreciso, sem linhas identificáveis.

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