Dos cheques sem fundos

O artigo 171 do nosso Código Penal, num dos seus incisos e parágrafos, estabelece pena de reclusão de um a cinco anos a quem “emite cheque, sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado, ou lhe frustra o pagamento”.

Não é preciso ser jurista, nem jurisconsulto, nem intérprete da Lei, nem Advogado, nem bacharel, nem sequer simples estudante de direito, para compreender logo que, na forma da Lei, a simples emissão do cheque sem fundos já, por si, constitui crime, punível com reclusão de um a cinco anos de cadeia.

Acontece que nas relações comerciais, e mesmo no trato social, há muitas pessoas que dão o cheque sabendo que naquele momento está desprovido de fundos, mas como é de noite, ou sábado, ou domingo, ou feriado, e naquele momento o Banco está fechado, assim procedem com a intenção de no primeiro dia útil vindouro fazerem o depósito logo na abertura do expediente bancário. E de fato quase sempre o fazem. Quando o cheque é apresentado no balcão, ou através da compensação bancária, é pago normalmente.

Se o dispositivo do Código Penal for aplicado rigorosamente, ao pé da letra, o fato do cheque não ter tido fundos na hora de sua emissão, mas ter sido liquidado posteriormente, quando da apresentação, não extingue o crime, porque “emitido” sem suficiente provisão de fundos.

Diante do exagerado rigor da Lei e da inexistência de qualquer prejuízo, os Tribunais passaram a interpretar que o crime de emissão de cheque sem fundos só se consuma no momento da recusa de pagamento, pelo Banco sacado.

Apresentou-se, além disso, outro fenômeno: muitas pessoas davam cheques pré-datados. Como o cheque, pela sua própria definição, é uma ordem de pagamento à vista, e havia uma quantidade espantosa de cheques pré-datados devolvidos por falta de pagamento, os tribunais passaram a interpretar que o fato de uma pessoa aceitar e receber um cheque pré-datado, esse título perdia as características de cheque e passava a ser um título cambial como outro qualquer, equivalendo a nota promissória. Assim, a emissão desse cheque pré-datado deixava de ser crime, para tornar-se tão-só e simplesmente uma obrigação civil, sujeitando-se à execução, e não à prisão.

Observa-se, no entretanto, que, apesar de toda essa benignidade e tolerância da Justiça, numa adaptação da norma legal à realidade social, nem mesmo assim o número de cheques sem fundo diminuiu.

Tanto assim que a imprensa noticiou recentemente que no período que vai de janeiro a maio deste ano, foram emitidos aqui no nosso Estado 837 mil cheques sem fundos, importando num prejuízo para o comércio orçado em cerca de 287 milhões de reais.

O Sr. José Olavo de Macedo, Superintendente da Associação Capixaba de Supermercados declarou que oitenta por cento desses cheques são pré-datados, o que importa em dizer que, nesse caso, não há crime.

À primeira vista pode parecer que, frente à omissão do legislador, a Justiça esteja sendo indiferente a um problema gravíssimo, seríssimo e de grande repercussão nos fenômenos sociais e econômicos, deixando de aplicar a Lei na sua legítima expressão.

Os leigos e jejunos em matéria penal não conseguem compreender que, por trás dessas decisões judiciais não se faz nada mais nada menos do que aplicar a mais sadia política criminal.

Se não, vejamos: suponhamos que fossem instaurados inquéritos e processos contra os 837 mil emitentes desses cheques sem fundo. Não haveria delegados, nem escrivães, nem escreventes, nem muito menos Juízes e Promotores em número suficiente sequer para a instauração da ação.

E, finalmente, após o término de tantos processos, onde seriam alojados os condenados? Onde cumpririam as penas? Em que cadeias, pois sabe-se perfeitamente que independentemente da quantidade imensa de estelionatários, as prisões já se acham escandalosamente abarrotadas. O caso, portanto, sobrepõe-se à Lei penal.

A propósito, vale relembrar as palavras de Del Vecchio, quando dizia que “o crime não é simplesmente um fato individual pelo qual deve responder, de modo exclusivo, seu autor, para repará-lo; é também – e precisamente nas formas mais graves e constantes – um fato social que revela desequilíbrios na estrutura da sociedade onde se produz. Por conseguinte, suscita problemas muito além da pena e da reparação devidas pelo criminoso”.

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