Dos tóxicos

Lá pelos idos de 1976, em plena ditadura militar, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Poder Executivo, a Lei 6.368, de 21 de outubro daquele ano, que, segundo se lê no seu frontispício, “dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substância entorpecente ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências”, conhecida mais comumente como “lei anti-tóxicos”.

Essa Lei recebeu, na época, as mais contundentes e ferozes críticas dos juristas e democratas autênticos, que se referiam a ela como manifestação perfeita da ditadura militar em que vivíamos.

No meio de uma enxurrada de críticas e deboches, o mínimo que se dizia dela, era que se tratava de uma Lei draconiana, impiedosa, cruel, chegando às raias do absurdo.

A palavra “draconiana” vem de Dracon, legislador ateniense que viveu 630 anos antes de Cristo. Foi o autor do primeiro código de leis e escritos dos atenienses e era tal sua dureza que Heródico disse que elas não haviam sido elaboradas por um homem, mas por um dragão; e Demades afirmava que foram escritas com sangue, tantos eram os crimes punidos com a pena de morte.

Acontece que, restabelecida a democracia no País, no mesmo instante em que os ventos da liberdade passaram a soprar, tratou-se logo de editar a Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, que criou a figura dos “crimes hediondos”, dentre os quais se incluiu “o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins”.

De acordo com essa Lei, esses crimes são insuscetíveis de anistia, graça e indulto; de fiança e liberdade provisória; e a pena será cumprida integralmente em regime fechado, ou seja, os condenados não terão possibilidade de, através de um bom comportamento e prova de readaptação social, avançarem para um regime semi-aberto e gozarem do benefício da liberdade condicional.

Tal é o caráter draconiano dessa Lei, que passou a ser designada no mundo jurídico como “lei hedionda”, surgindo críticas e mais críticas a seu respeito em todas as áreas do Direito, especialmente dentre os penalistas, penitenciaristas e criminologistas.

O combativo e brilhante advogado, Dr. Vinicius Bittencourt, em seu extraordinário livro “Falando Francamente”, assim se manifesta: “A lei hedionda (8072, de 25/7/1990), editada para atender à mídia, exasperou a pena de sequestro. Mas não impediu que em Belo Horizonte, logo após sua publicação, uma menina fosse sequestrada, assassinada e carbonizada. O agravamento das penas não concorrerá, de modo algum, para solucionar o problema. Já alertava Beccaria, há mais de dois séculos, que a pena deve ser a mínima possível, porém de aplicação rápida e inevitável, porque o criminoso não teme a gravidade da pena e sim a presteza de sua aplicação e inexorabilidade”.

A Lei 6368, que já era severíssima, tornou-se, assim, verdadeiramente draconiana.

Convém salientar, antes de mais nada, que a Lei não faz distinção entre o pequeno e o grande traficante. O tratamento é igual, tanto para o que é preso com pequenos frascos de lança-perfumes, como para o capitão do tráfico, que traz toneladas de cocaína da Bolivia ou da Colombia.

Eis que agora, para tranquilidade da consciência jurídica, o Superior Tribunal de Justiça acaba de dar duas decisões históricas, dando uma interpretação mais humana a tão complexo problema.

Assim, temos:

  1. Cloreto de etila (lança perfume) – Ingresso irregular no Brasil – Contrabando – O cloreto de etila (lança perfume) não está relacionado entre as substâncias que atraem a incidência da Lei nº 6.368/76. A entrada proibida, no país, configura, crime de contrabando. (DJU-STJ – 30.08.99 – HC nº 8.300 – PR – Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro – pág. 75).
  1. O cloreto de etila, por não causar dependência física ou psíquica, não pode ser classificado como droga de tráfico e uso condenado nas sanções da Lei nº 6.368/76. A apreensão de quantidade ínfima de mercadoria – um único tubo de lança perfume – sem qualquer prova do contrabando, não tem repercussão penal, à míngua de lesão ao bem jurídico tutelado, enquadrando-se o tema no campo da insignificância. Habeas-corpus concedido (DJU-STJ – 17.04.00-HC. 10.971 – MS – Rel. Min. Vicente Leal – pág. 96).

Pensamos, agora, naqueles que pegaram anos e anos de cadeia antes de ser adotada essa nova interpretação à famigerada Lei.

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