Exemplos

Dois casos:

  1. Há pouco tempo a imprensa noticiou fato ocorrido nos Estados Unidos, em que um cidadão levantou-se de noite, enquanto dormia, e matou a sogra, com quem já vivia às turras. Instaurada a ação penal, ficou comprovado que se tratava de um sonâmbulo: já tinham sido registradas inúmeras outras ocorrências em que saia andando, dormindo, ou dirigia carro, indo parar longe de casa e da cama, sem saber por que. Comportava-se como se fosse um autômato.

Constatada essa anomalia, ou melhor, esse distúrbio psíquico, acabou absolvido, porque não houve crime, uma vez que ninguém pode cometer crime dormindo. Fêz-se apenas a recomendação para que fosse submetido a observações e tratamento.

  1. O indivíduo, após beber um ou dois copos de cerveja, assumiu seu posto de controle do tráfego de trens. Dormiu, e deixou de acionar os mecanismos necessários no painel eletrônico, ocasionando terrível desastre, no qual morreram cerca de 300 pessoas. Foi condenado a morrer na cadeira elétrica.

Esses dois casos se passaram nos Estados Unidos – a nação mais rica, mais avançada e mais desenvolvida intelectual e materialmente, em todo mundo contemporâneo.

Vejamos, agora, o que aconteceria no nosso País, à luz do nosso Direito, inspirado, desde suas origens, no Direito português, que, por sua vez, foi se basear no Direito Romano, ou seja, no direito que vigia em Roma poucos anos antes e poucos anos depois do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou seja, há cerca de dois mil anos.

No primeiro caso, o sonâmbulo seria declarado “inimputável”. Isto quer dizer: sem capacidade para responder pelos seus atos, uma vez que se achava dormindo, no momento do fato.

Faltando-lhe a culpabilidade – elemento essencial para que um fato seja crime – não pode ser condenado a pena alguma, mas tem que ser submetido a “medida de segurança”. Essa medida de segurança consistirá no internamento compulsório num manicômio judiciário, onde deverá permanecer “por tempo indeterminado”, podendo ser por todo o restante de sua vida – o que, em poucas palavras, equivaleria a prisão perpétua.

Nesse “manicômio judiciário”, que não é nada mais nada menos do que um manicômio comum, como outro qualquer, porque no nosso País não existe hospital especializado, exclusivo, à disposição da Justiça, o indivíduo dotado de tal “estado perigoso”, é trancafiado numa cela, e muitas vezes amarrado. O único consolo é que de vez em quando o carcereiro vai dizer-lhe que “não se encontra preso”, mas apenas submetido a “medida de segurança”. Esse é o tratamento dispensado, no nosso País, aos alienados em geral, inclusive toxicômanos (com exceção dos ricos, que são internados em hospitais de luxo, existentes principalmente no Rio e São Paulo, às custas da família).

Já no segundo caso, não. Aí existe responsabilidade penal. O indivíduo bebeu antes de ir para o serviço, e foi, portanto, negligente. Não pensou no risco – previsível – a que estaria submetendo inocentes passageiros dos trens. E daí adveio o choque, com as terríveis consequências registradas.

Foi, então, condenado a um ano de prisão (pena máxima), na forma do art. 129, § 6º do Código Penal brasileiro. Não importa se houve uma, duas ou centenas de vítimas, porque isso não é considerado em crimes culposos, ainda mais no caso presente, em que não houve ação, mas, sim, apenas uma omissão ao dever de vigilância e cautela, a que estava obrigado, no cumprimento dos seus deveres: não cometeu o crime dormindo (como o sonâmbulo), mas porque dormiu.

Em se tratando de crime culposo, a pena pode ser apenas “restritiva de direitos” (CP, art. 54), e consistirá, portanto, na proibição de continuar no exercício de suas funções durante algum tempo, na obrigação de prestar assistência a doentes, etc.

Este é o Direito vigente em nosso País – país onde, segundo dizia o Padre Antonio Vieira, “os delitos têm carta de alforria e os merecimentos andam homiziados”.

Efetivamente, na primeira hipótese, “não houve crime”, porque o agente era “inimputável” – incapaz de responder pelo homicídio de uma pessoa -, e acabou condenado à prisão por tempo indeterminado, e talvez mesmo, dependendo do Juiz, à prisão perpétua. Já na segunda hipótese, era plenamente “imputável”, mas como cometeu “crime culposo” – que é aquele em que houve imprudência, negligência ou imperícia – é condenado. Só que vai cumprir a pena em liberdade, prestando “serviços” à comunidade.

Por essas e por outras, vale a pena relembrar as sábias palavras de Steinberg: “Há mil maneiras de praticar injustiças sem se quebrar uma única lei”.

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