Falar e fazer democracia

A palavra democracia pode ser empregada em vários sentidos, ressaltando-se: a) como regime político; b) como forma de comportamento; c) como filosofia de vida.

Uns entendem que democracia é o tipo de Estado em que, segundo a expressão cunhada pelos revolucionários franceses, há o governo do povo, pelo povo e para o povo.

Outra corrente, entretanto, interpreta a democracia como forma de comportamento. Democracia, para os seguidores dessa linha de pensamento, é sinônimo de liberdade; liberdade de ação, liberdade de comportamento, liberdade de pensamento, liberdade de idéias, liberdade religiosa, liberdade de imprensa, etc.

Mas há também – the last but not the least – os que interpretam a democracia como uma espécie de filosofia de vida. Assim, por exemplo, o cidadão bem humorado, que trata todo mundo com lhaneza e cordialidade, costuma ser designado como democrata autêntico; aquele que é favorável à livre-empresa, contra a estatização da economia e defende a livre-concorrência, rotula-se como adepto da democracia econômica; o que luta pelas liberdades sindicais, direitos trabalhistas plenos, empregos, women’s liberation, liberdade sexual, é um social democrata; o que é a favor das minorias raciais é democrata no sentido sociológico e integracionista do termo.

Alguns Estados submetidos a regimes ditatoriais terríveis, desumanos e cruéis, costumam ser carimbados de democracias. Basta recordar o exemplo das ex-Alemanhas. Antes da unificação, a Alemanha verdadeiramente democrática, onde o povo vivia livre no sentido exato do termo, chamava-se República Federal da Alemanha, enquanto a outra Alemanha, que permaneceu durante todo tempo sob ditadura atroz, inclemente e impiedosa, adotou o nome de República Democrática da Alemanha. Enquanto uma adotava democracia na prática, a outra tinha-a no rótulo.

E a História oferece-nos inúmeros casos semelhantes: Hitler, Mussolini, Stalin, Salazar, Franco, Getúlio Vargas, Peron e tantos outros famosos ditadores de nossa época eram aclamados e louvados como democratas .

A Revolução de 64 foi desencadeada para restabelecer a democracia no Brasil. Igualzinho ao que acaba de ocorrer com a Rússia, em que o Sr. Boris Yeltsin fechou o Congresso e a Suprema Corte para salvar a democracia, como foi anunciado logo em seguida pelo Sr. Bill Clinton, Presidente dos Estados Unidos e demais líderes das democracias ocidentais.

Além disso, dentro da própria democracia, surgiram: democracia direta e indireta, social e econômica, corporativista e participativa, republicana e monarquista, presidencialista, parlamentarista e de gabinete, etc.

Como se conclui facilmente que as interpretações em torno de democracia e democrata variam de cabeça para cabeça.

Seriam, a bem dizer, elementos essenciais, característicos da democracia: a) é o regime da maioria; b) respeito às manifestações das minorias, para que elas possam, com o passar do tempo, se tornarem maiorias – caso obtenham apoio popular; c) alternância no Poder ou seja, mandatos por períodos fixos e determinados, proibindo-se em certas hipóteses, até mesmo reeleição; d) garantia das liberdades públicas e privadas, ou seja, livre exercício dos direitos públicos e individuais.

Estabelece-se controvérsia em torno da interpretação e aplicação dos vários conceitos. Há, no entanto, unanimidade em torno de um ponto: democracia é o regime da maioria.

Na democracia as minorias são respeitadas. As minorias têm direito de voz e de voto, mas tem de prevalecer, sempre, a vontade da maioria.

Esses raciocínios, que parecem tão evidentes e elementares, nos vêm à mente quando presenciamos o que acaba de acontecer recentemente em nosso país com relação à cassação dos direitos políticos do ex-presidente Collor.

Quatro ministros do Supremo Tribunal Federal, juristas de alto valor, situados na cúpula do pensamento jurídico nacional, entenderam que o ex-presidente tinha o direito de disputar eleições.

Pois bem. Foram exatamente os políticos, deputados e senadores eleitos pelo povo, que levantaram suas vozes iradas contra o Supremo, exigindo a cassação dos direitos políticos do ex-presidente.

Ora, se o ex-presidente agiu mal no exercício de suas funções, se prevaricou ou cometeu atos de corrupção fraudando a confiança que lhe foi depositada nas urnas pelo povo, nada mais razoável e nada mais justo do que ser submetido ao julgamento desse mesmo povo, através de eleições livres e democráticas.

Por incrível que pareça, os democratas representantes do povo parece que não acreditam no julgamento popular.

Os ministros do Supremo Tribunal Federal, que não foram eleitos pelo povo e não se confessam, dia e noite, democratas, revelaram-se, na prática, mais democratas do que os políticos que tanto falam em democracia.

Há ainda algo curioso. A nação vem acompanhando atentamente os trabalhos das comissões parlamentares de inquérito que, após investigação sumária, concluem por cassações e perda de mandato do presidente da República e parlamentares. Alguns ficam perplexos e indagam por que o Judiciário não age com a mesma presteza.

Acontece que, na forma de dispositivo constitucional criado pelo próprio Legislativo, a Lei garante ao acusado, em todo e qualquer processo, o mais amplo direito de defesa. Esse amplo contraditório só havia para os processos judiciais. A Constituição de 1988, entretanto, estendeu-o também para os processos administrativos.

Contudo, a despeito de todas essas garantias constitucionais criadas por eles mesmos, os membros dessas comissões parlamentares de inquérito instituíram um rito, digamos, supersumaríssimo, formando sua convicção através de análises subjetivas e elementos de convicção que formam com base no depoimento do acusado e em provas por eles mesmos recolhidas, num método estritamente inquisitorial.

Isso seria absolutamente impossível no Judiciário. O Judiciário acha-se obrigado a obedecer, com todo rigor, a todos os trâmites fixados pela legislação criada pelo próprio Poder Legislativo.

Assim, digamos que um juiz assista, ele mesmo, a um assalto à mão armada, ou a um estupro, ou a uma lesão corporal. Apesar de ter testemunhado o crime em seus mínimos detalhes e estar convencido da culpa do acusado, sobre a qual não paira qualquer dúvida, não poderá condená-lo a uma pena, por mínima que seja, sem oferecer-lhe a mais ampla defesa, num processo penal que deverá percorrer todas suas etapas, até final, possibilitando-lhe além disso, todos os recursos, a todos os Tribunais na forma da Lei.

No Judiciário, a sentença só é executada depois de esgotados todos os recursos admissíveis e cabíveis, conforme previstos nas leis elaboradas e aprovadas pelo Legislativo; já no Legislativo, não – a sentença condenatória é irrecorrível e executada imediatamente .

Por isso, a Justiça do Legislativo é célere, rápida, veloz, e a do Judiciário, arrastada, morosa, difícil.

Isso nos faz lembrar as célebres palavras de Talleyrand, quando dizia, naquela época, que em política as palavras foram feitas para ocultar o pensamento! Entre falar em democracia e fazer democracia vai, inegavelmente, uma grande distância.

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