Tomada de reféns

Há poucos meses a nação acompanhou, sobressaltada, o desenrolar do sequestro de funcionários e inúmeras autoridades, numa penitenciária de Goiás, sob a liderança de Leonardo Pareja. Os acontecimentos se prolongaram por uma ou duas semanas, devido às inúmeras negociações desenvolvidas.

Esses fatos vêm se tornando comuns na atual quadra da vida brasileira, razão por que há alguns aspectos que merecem ser ressaltados e que estão exigindo profundas análises e solução por parte dos legisladores.

Se não, vejamos:

Em vários países do mundo, notadamente Estados Unidos, existe um instituto jurídico a que se deu o nome de “plea bargaining”.

Trata-se de uma faculdade conferida pela lei ao Ministério Público, permitindo-lhe fazer acordos com os réus, transigir, desistir da ação penal e até mesmo conceder-lhes imunidade para que os mesmos confessem detalhes de crimes, apontem cúmplices, chefes, planos, etc.

O exercício dessa faculdade tem sido de grande utilidade no que se relaciona à descoberta das ações do chamado crime organizado. O promotor “barganha” com um dos réus presos e garante deixá-lo isento de pena ou assegura-lhe inúmeras vantagens e favores legais em troca de revelações que comprometam os “cabeças” e líderes da quadrilha.

Esse instituto jurídico não existe no Brasil. A nova Constituição, não obstante ter demonstrado notável preocupação para com o Ministério Público, ampliando-lhe a faixa de direitos e prerrogativas, infelizmente esqueceu-se desse importantíssimo aspecto.

Aqui, muito embora se diga no jargão forense que o Ministério Público é o “dominus litis”, ou seja, o senhor da ação penal, isso no entanto, não passa de construção semântica, porque exerce ele a função de oferecer a denúncia nos crimes de ação pública incondicionada e nos de ação pública condicionada, em que ocorra a representação do ofendido.

Havendo motivos e fundamentos suficientes, isto é, apresentados os pressupostos legais, o promotor de justiça não pode discricionariamente deixar de agir, sob pena de responsabilidade funcional e criminal (CP, art. 319).

O promotor não tem, no nosso País, o poder de “barganhar” com o acusado e, através de negociações, por razões de conveniência da própria justiça ou por relevante interesse público, deixar de promover a ação penal.

Ademais, uma vez desencadeada a ação penal, não pode desistir dela. Mesmo na hipótese em que a pena não venha mais a surtir qualquer efeito, como por exemplo, por ter sido o réu acometido de doença incurável ou apresentar-se totalmente reabilitado. De todo modo, o processo tem que ir até o fim e só pode acabar com a sentença do juiz.

Isso nos vem à mente, também, a propósito desses frequentes casos de sequestro que tem havido no nosso País. Geralmente o criminoso toma uma vítima por refém, impondo condições. A vítima suplica que sejam aceitas essas condições, oferecendo-se meios de fuga aos criminosos e dando-lhes a impunidade. Ou a família pede que a Polícia não intervenha, para não colocar em risco a vida do refém, até que seja pago o resgate.

Nessas condições temos visto delegados, promotores e até mesmo juízes combinarem e fazerem acordos com os sequestradores.

Essa barganha, entretanto, convém frisar, é totalmente à margem da Lei. São crimes de ação pública incondicionada, em que a autoridade é obrigada a intervir de ofício independentemente de qualquer provocação da vítima.

Nem o delegado, nem o Ministério Público, nem o juiz têm o poder legal de renúncia à perseguição penal. Muito menos para darem dinheiro, carro e imunidade aos criminosos.

Naquela hora dramática, porém, as autoridades agem sob tremenda pressão social, psicológica e até política. Ainda há poucos dias, nesse caso ocorrido em Goiás, vimos que Ministro da Justiça e o próprio Governador do Estado intervieram para arranjar transporte, dinheiro e oferecerem garantias aos sequestradores. A população de todo o País acompanhava angustiada pela televisão o desfecho daquele terrível episódio que culminou com a morte de uma moça inocente, que não tinha nada a ver com o sequestro, a re-prisão de alguns, e a fuga e impunidade de outros.

Já está se tornando comum a Polícia “não agir”, para não colocar em risco a vida do refém.

Vê-se nitidamente que nessas ocasiões a opinião pública ergue-se uníssona contra as autoridades que não queiram ceder às exigências dos infratores, ou seja, estabelece-se uma revolta geral contra aqueles que queiram, efetivamente, cumprir a lei.

A sociedade coloca a segurança das vítimas muito acima do simples cumprimento de uma legislação anacrônica e meramente formal.

Mas, nesse mesmo contexto, nos deparamos, ainda, com outras situações singulares, e para as quais não há, também, previsão legal.

Num desses sequestros uma jornalista ofereceu-se espontaneamente para substituir uma das reféns, o que foi aceito pelos sequestradores. Aí, então, surge a indagação: essa jornalista foi sequestrada? Ora, é bem sabido que no crime de sequestro o consentimento da vítima exclui a ilicitude. Não existe sequestro de quem quer ser sequestrado. Essa substituição configura o tipo?

Além disso, no caso “Pareja”, toda a ação visava unica e exclusivamente à obtenção da liberdade. E não comete crime algum o preso que tenta fugir, conforme acentuado pela Declaração dos Direitos do Homem, proclamada e sancionada pela ONU, aceita pelo Direito brasileiro.

Ora, os sequestros realizados não tiveram a finalidade de extorsão – não pretendiam o enriquecimento ilícito (aliás, com tantas e tão valiosas vítimas, o resgate poderia chegar a milhões de reais). E assim todas as condutas realizadas estão compreendidas no objetivo de obtenção da liberdade (instinto natural do homem e de todos os seres vivos), sendo, portanto, atípicas – pelo menos na forma do nosso atual direito positivo.

Cremos que já estaria bem na hora de se procurar encarar com seriedade tais problemas, buscando-se urgentemente uma solução, ou pelo menos introduzindo-se na legislação a figura jurídica do “plea bargaining”, que inegavelmente já está existindo na prática.

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