Responsabilidade substitutiva

A responsabilidade penal, desde o tempo dos romanos – e assim permaneceu durante séculos – era substituível. Os Príncipes, duques, barões, lordes, enfim, os nobres em geral, quando condenados, podiam designar um escravo ou subalterno de qualquer natureza para cumprir a pena em seu lugar. Muitos “inferiores” foram para as galés, para as cadeias, ou mesmo perderam a vida nas execuções de penas de morte, em lugar de seus patrões ou Senhores.

Essa situação absurda, ilógica e incrivelmente desumana só veio acabar, pode-se dizer, após a Revolução Francesa, de 1789, que abriu novos horizontes para os direitos individuais, e, por conseguinte, em torno das concepções jurídico-penais.

A implantação dos novos princípios e fundamentos da responsabilidade penal, entretanto, só se consolidou após a promulgação dos novos Códigos Penais no decorrer do século 19, até, pode-se dizer, quase na soleira do século 20.

Acontece que, por incrível que pareça, esse instituto jurídico não durou cem anos. Nas vésperas da chegada do século 21 retorna, triunfante, a responsabilidade substitutiva.

Se não, vejamos.

Ainda há pouco mais de um mês a Nação tomou conhecimento da prisão do Sr. Clarimundo, controlador do Banco Nacional, que ficou responsável por supostas fraudes ali apuradas. E quem era o Sr. Clarimundo? Nada mais, nada menos do que mero “controlador” do Banco. Os Diretores e proprietários do Banco nada sofreram – nem sequer uma simples prisão domiciliar.

E isso por que? Porque a Lei estabelece a responsabilidade “solidária” do agente, funcionário, encarregado ou preposto. Nessa “responsabilidade solidária” quem está em primeiro lugar, é, sem dúvida alguma, o subalterno, só aparecendo, em último lugar, o supremo dirigente e comandante, ou mesmo o proprietário.

O Código de Defesa do Consumidor estabelece em seu artigo 75, também, a responsabilidade do “diretor, administrador ou gerente da pessoa jurídica que promover, permitir ou por qualquer modo aprovar o fornecimento, oferta, exposição à venda ou manutenção em depósito de produtos ou a oferta e prestação de serviços” nas condições por ele proibidas.

Isto vem dando como consequência que os proprietários e donos de grandes e poderosas empresas colocam subalternos promovendo seus negócios por toda a vastidão do território nacional. É lógico que, constatada a infração, a autoridade vai prender e autuar, de imediato, o primeiro responsável solidário, que está à sua disposição – e é esse humilde funcionário que vai para a cadeia, e suporta os ônus de um processo criminal.

Já vimos inúmeros gerentes e funcionários subalternos serem carregados pela Rádio Patrulha, algemados, enquanto os proprietários dos supermercados, lá longe, riam às bandeiras despregadas.

Nos crimes de imprensa a lei específica adotou a chamada responsabilidade sucessiva ou subsidiária, em que o primeiro responsável é autor, “sendo pessoa idônea e residente no País”, e, quando este estiver ausente do País ou não tiver idoneidade para responder pelo crime, “o diretor ou redator-chefe do jornal ou periódico; ou o diretor ou redator registrado, no caso de programa de notícias, reportagens, etc.” (art. 37 da Lei 5.250, de 9.2.67), indo daí para o gerente, o diretor das oficinas, até os distribuidores da publicação.

A Lei de Imprensa reconhece, dessa maneira, que todos contribuíram para o crime: o diretor do jornal, o redator, o editor, o que prestou as declarações, o linotipista, o jornalista, o distribuidor e até o jornaleiro que vendeu o jornal, mas no entanto, só um deve ser punido, de acordo com a escala hierárquica de valores e de substituições estabelecidas. Quer dizer que a “medida da culpabilidade” de uns fica na dependência da existência da punibilidade de outros.

Essas novidades deveriam pelo menos dar uma marcha à ré mais vigorosa e chegar logo à reimplantação do Direito Romano, onde já havia uma distinção entre autor, instigador, colaborador e auxiliar.

Entendiam os romanos que há apenas colaboração quando o agente dá apoio à ação de outrem, através conduta dolosa, que é realmente necessária à execução do crime. Esta ajuda é sempre possível, desde a fase preparatória até à consumação definitiva da agressão ao bem jurídico.

A colaboração é às vezes secundária e desnecessária, mas pode vir a se tornar necessária e indispensável, suprindo ocasionalmente a principal.

É possível existir num crime a cooperação acessória, com ou sem prévio acordo. Isto sucede especialmente nos chamados crimes de ímpeto. Precisa ficar provado que essas ações tiveram influência para o resultado, o que, em certos casos, é muito duvidoso. Por isso o grau de punição fica sujeito a um juízo de valor, a critério do julgador, sob análises objetivas.

Fica difícil compreender-se como se pode tratar com ingênua simplicidade assuntos tão complexos, ocasionando revoltantes e clamorosas injustiças, ressucitando-se a responsabilidade substitutiva que exigiu tanta evolução científica e cultural para ser sepultada – e os doutrinadores da época achavam que “sepultada definitivamente”.

Bem a propósito vêm as palavras do Eclesiastes: “As coisas que foram, são as que serão; o que já se fez, se voltará a fazer e não há nada de novo sob o sol; o que existe já o era desde há tempos e tempos anteriores a nós” (1-9-10).

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