O Caso Madureira

O funcionário público, no exercício de suas funções, pode praticar atos que configuram várias espécies de infrações: crimes de responsabilidade, faltas administrativas e funcionais, e crimes comuns.

Quando o funcionário pratica lesões corporais em alguém, mata, passa cheques sem fundos, etc., comete crimes comuns, capitulados no Código Penal, sujeitando-se à condenação penal respectiva.

Quando falta injustificadamente ao serviço, mostra-se desidioso no cumprimento de seus deveres funcionais ou, de qualquer forma, prejudica a boa marcha da Administração Pública, comete faltas ou delitos meramente administrativos, sujeitando-se a penas administrativas: suspensão, advertência e até mesmo demissão.

O funcionário pode ser de uma honestidade a toda prova e respeitar rigorosamente a Lei, mas se faltar ao serviço, sem justificação, por mais de trinta dias, perderá o emprego. Não se considera sua conduta ilibada para os efeitos penais e constitucionais, mas tão só sua falta administrativa.

Da mesma forma, perderá o mandato o Deputado “que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada” (CF, art. 55, III). Assim, para decretar-se a cassação do seu mandato não se vai analisar sua conduta funcional ou moral, mas simplesmente, de forma meramente objetiva, se faltou durante aquele período todo, e se, para suas faltas, havia licença da Casa a que pertence.

Já no crime de responsabilidade há violação à Constituição. Como o funcionário é exatamente o encarregado de zelar pelos ditames constitucionais, prestando até mesmo juramento nesse sentido, por ocasião de sua posse, a inobservância dessa regra implica em crime de responsabilidade, punível com a perda do cargo ou mandato.

As três áreas – penal, administrativa e constitucional – são independentes. A absolvição numa não impede, de forma alguma, a condenação numa das outras duas ou nas outras duas.

Há fatos que são crimes de responsabilidade, mas não se enquadram como infração administrativa nem como crime comum.

Mas, por outro lado, o funcionário pode, num mesmo ato, cometer crime de responsabilidade, crime comum e infração administrativa.

Assim, por exemplo, a corrupção administrativa, a prevaricação, o peculato, etc.

O funcionário pode cometer um crime comum, no exercício de suas funções, e fora delas. Por exemplo: se o funcionário é síndico de um edifício privado e se apropria do dinheiro do condomínio, comete crime de apropriação indébita (CP, art. 168), ou seja, crime comum. Se, entretanto, é agente arrecadador de tributos, e se apropria do dinheiro público, comete crime de peculato (CP, art. 312), que é crime próprio de funcionário. Da mesma forma o policial, que pode muito bem matar sua mulher (crime comum, cometido fora da atividade policial) ou, no exercício de sua atividade policial, matar um delinquente ou um transeunte (crime militar próprio).

Já o crime de responsabilidade, como bem o define a Enciclopédia Saraiva, “é o crime praticado por aquele que se acha no exercício de função pública e que viola o prestígio, o decoro, a incolumidade e o interesse da normalidade funcional da administração pública”.

No crime de responsabilidade a análise se prende apenas àqueles temas que são próprios do Direito Constitucional. Portanto, o funcionário pode ser condenado penal e administrativamente, mas não responder por qualquer crime de responsabilidade. Pode, contudo, perder o cargo, ou o mandato, e não responder por crime comum, nem tampouco por infração administrativa. É o que está acontecendo com o ex-Presidente Collor, que perdeu o mandato, por ter sido condenado por crime de responsabilidade, mas foi absolvido nas demais áreas do Direito.

O funcionário que comete peculato pode ser exonerado, sendo considerado incompatível para o exercício de função pública, não obstante tenha sido absolvido no processo criminal. Os julgamentos são efetuados em processos separados e autônomos.

Os Deputados filiados ao Partido Comunista perderam seus mandatos em 1947, por decisão do próprio Parlamento, quando foi extinto e declarado na ilegalidade o Partido Comunista.

Da mesma forma, o Deputado Barreto Pinto teve mandato cassado porque posou de cuecas numa fotografia publicada na revista “O Cruzeiro”.

Tanto num como no outro caso, a decisão foi puramente política: “atentado contra a segurança nacional”, e “violação do decoro parlamentar”. Essas cassações tiveram caráter exclusivamente constitucional, sem qualquer repercussão nas outras áreas.                Outras vezes a condenação numa área repercute na outra. Assim, perderá o mandato, o deputado “que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado” (CF, art. 55, VI).

As análises e soluções são, como se vê, diferentes, quer se trate de uma responsabilidade moral, política ou jurídica.

Esses raciocínios nos vêm à mente diante da surpresa, provocada em alguns, no julgamento do mandado de segurança impetrado pelo Deputado Madureira. Ali o Tribunal, baseado inclusive em magnífico e judicioso parecer do eminente Jurista Rafael Mayer, ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal, entendeu que um Deputado não pode ser julgado, numa legislatura, por suposta infração constitucional cometida em outra legislatura.

O Tribunal não entrou nas áreas criminal e administrativa, nas quais toda e qualquer responsabilidade permanece incólume, sujeita a apuração e apreciação em processos próprios, e autônomos.

A tese defendida pelo Deputado Madureira é perfeitamente jurídica. Há nela, sem dúvida alguma, dois pontos fundamentais:

  1. o princípio da soberania popular, porque a eleição, para um outro mandato, importa num julgamento ético, pelo povo, que é a instância mais apropriada para análise definitiva acerca do “decoro” na conduta do parlamentar no exercício de seu mandato – se foi ética ou aética, decorosa ou indecorosa.

A alegação de que os fatos vieram à tona após as eleições, não é jurídica, porque ao votar o povo faz um julgamento de todo o mandato, e de toda a vida do candidato – seu passado, suas ações e seu comportamento perante a sociedade. Há um juízo de valor envolvendo todos os atos do candidato e todo seu mandato.

É o mesmo que se dá, por exemplo, nos crimes continuados, habituais e permanentes. O Juiz, digamos, condena um réu por contrabando ou posse e guarda de entorpecentes. Após a condenação a Polícia descobre outras mercadorias e tóxicos em outros depósitos, ignorados por ocasião da prisão. Nesses e em todos os casos semelhantes, o Direito considera essas condutas posteriores, desconhecidas antes do processo e da sentença, como incluídas “em continuidade”, ou “na habitualidade”. O julgamento é “total”.

Se a eleição foi a 3 de outubro, não houve o veredito popular com referência ao mandato até aquela data, mas do mandato completo, abrangendo atos até o seu último dia – conhecidos e desconhecidos.

2. princípio da igualdade de todos perante a Lei – porque aqueles que não se candidataram ou perderam a eleição ficariam isentos, só havendo punição para o que se reelegeu, o que configuraria evidente inconstitucionalidade e rematada injustiça.

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