Questão de Justiça

O ponto mais importante da reforma da Previdência ora em debate no Congresso Nacional é, sem dúvida alguma, a supressão do direito à aposentadoria por tempo de serviço. Após a aprovação e promulgação da emenda constitucional proposta pelo Governo, só se computará, para efeito de aposentadoria, o tempo de contribuição.

É bem sabido que há milhões de pessoas por esse Brasil afora, principalmente na zona rural, que começam a trabalhar desde a mocidade, prestando serviços como “bóias frias”, empregadas domésticas, vendedores ambulantes, feirantes, diaristas, prestadores de serviços eventuais, tais como bombeiros, eletricistas, pedreiros, etc.. Trabalham anos a fio, como autônomos ou para terceiros, sem carteira assinada. Não são contribuintes da Previdência Social.

Esse imenso contingente humano que compõe o chamado “trabalho informal”, ao atingir a velhice recebe atualmente uma mísera aposentadoria de cento e poucos reais, que é insignificante, mas pelo menos dá-lhe uma certa dignidade – evita que um pobre trabalhador, já no final de sua vida, tenha que mendigar ao filho ou a um parente, algum dinheiro para comprar cigarro, para comer um sanduíche ou para dar um pequeno agrado a um neto ou bisneto. Não precisa sofrer a humilhação de ficar pedindo dez ou vinte reais para essas diminutas necessidades.

Muitos exercem inúmeras atividades, sem se filiarem à Previdência, durante anos a fio. Aos 30, 40 anos de idade, finalmente, conseguem se estabelecer firmemente, passando a contribuintes da Previdência Social. Na forma da nova disposição constitucional, só a partir de então passarão a contar tempo para a aposentadoria, considerando-se apenas e tão-somente, seu tempo de contribuição.

A Lei nº 8.213/91, atualmente em vigor, exige a comprovação de tempo de serviço, para efeito de aposentadoria, única e exclusivamente através de prova documental. Inúmeros trabalhadores não vinham conseguindo se aposentar – apesar do tempo de serviço, especialmente no interior, em lavouras e fazendas – porque não dispunham de documento algum assinado por seu ou seus ex-empregadores.

A matéria gerou muita polêmica nos Tribunais, porque pessoas de idade avançada alegavam que haviam trabalhado a vida toda, desgraçando sua saúde e perdendo suas forças, mas nunca seus patrões lhes deram qualquer papel ou documento assinado.

A Justiça, entretanto, apegava-se ao texto da Lei, que não admite, de forma alguma, comprovação unicamente por prova testemunhal.

Recentemente, porém, o Superior Tribunal de Justiça, interpretando a matéria, assim decidiu:

“O Poder Judiciário só se justifica se visar à verdade real. Corolário do princípio moderno de acesso ao Judiciário, qualquer meio de prova é útil, salvo se receber o repúdio do Direito. A prova testemunhal é admitida. Não pode, por isso, ainda que a lei o faça, ser excluída, notadamente quando for a única hábil a evidenciar o fato. Os negócios de vulto, de regra, são reduzidos a escrito. Outra, porém, a regra geral quando os contratantes são simples, não afeitos às formalidades do Direito. Tal acontece com os chamados “bóias-frias”, muitas vezes impossibilitados, dada a situação econômica, de impor o registro em carteira. Impor outro meio de prova, quando a única for a testemunhal, restringir-se-á a busca da verdade real, o que não é inerente ao Direito Justo. Evidente a inconstitucionalidade da Lei nº 8.213/91 (art. 55 § 3º) e do Decreto nº 611/92 (arts. 60 e 61)” (REsp. 78.287-SP, relator Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJU-13.5.96, pág. 15586).

E é exatamente por causa de decisões corajosas, firmes como essa – e sobretudo dotadas de extraordinária sensibilidade moral e espiritual – que se pretende enfraquecer, e, se possível, amordaçar os Juízes.

Infelizmente atravessamos uma fase, em nosso País, em que não se trata mais de ampliar os direitos sociais, mas, sim, em reduzí-los, estreitá-los, restringí-los.

Essa jurisprudência do STJ, de fato, é avançada e revolucionária, atesta uma afirmação de Justiça, mas, desgraçadamente, vem contra a marcha voluptuosa das tendências da época.

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