O fim do Estado

Marx anunciou o fim do Estado, que haveria de acabar por si mesmo, envolto e absorvido por suas próprias contradições. Numa de suas cartas (a Weydemeyer), diz que não inventou essa forma de luta contra o Estado, mas apenas deu-lhe o caráter revolucionário. E Engels assinala que “a luta de classes deve fazer desaparecer o Estado”, ou seja, o ressurgimento ou fortalecimento do “inimigo interno”.

Para o marxismo o Estado seria o resultado de uma luta de classes; o fim de um processo desencadeado pelos conflitos entre as classes. Encontraria sua origem na estrutura econômica. Engels via no Estado “a confissão que a sociedade está mergulhada numa contradição insolúvel com ela mesma, da qual não tem capacidade de se desembaraçar”. E para Lenine, “o Estado surge no momento e na medida em que, objetivamente, as contradições de classes não podem ser conciliadas”; para que esses antagonismos não destruam a sociedade, uma força se coloca acima das classes para moderar o conflito e mantê-las nos limites da ordem.

Essas recapitulações são oportunas quando se vê que vivemos numa época em que, após a dissolução do Império Soviético, tanto se fala que o comunismo acabou e jaz irremediavelmente no lixo da História, mas tudo parece indicar que na realidade o que existe é exatamente o contrário.

O antigo e tradicional conceito de Estado não resistiu ao sol quente do progresso e da evolução do espírito humano, ficando apenas como simples reminiscência histórica. Nem sequer o hipotético “contrato social” sobreviveu às críticas e ao naufrágio dos tempos.

Hoje o que resta seriam, digamos, vestígios do Estado doutrora, tantos e tão diversificados são os instrumentos de controle da atividade estatal, distribuídos entre tantas pessoas.

Assistimos, antes de mais nada, a uma imensa multiplicação de leis, que deixaram de ser gerais, para disciplinarem, cada vez mais, aspectos particulares e específicos das atividades humanas. Há leis detalhistas e minuciosas que regulam todos os atos da administração, controlando-os e submetendo-os a um formalismo rigoroso, intrometendo-se e insinuando-se em todos os negócios, públicos e privados.

O Estado cada vez se legaliza mais. Quer abranger todas as situações práticas, dirigindo-as e acompanhando-as. Com isso se enfraquece. Perde o seu dinamismo. Paralisa-se.

O Estado se decompõe nas mãos de seus “inimigos internos”, despindo-se da soberania; ficando cada vez mais sem força; perdendo a própria autonomia; e tudo indica que caminha para o desaparecimento, segundo as previsões de Marx.

O fortalecimento das classes e instituições sociais empalideceu consideravelmente a idéia de soberania e faz periclitar o próprio Estado. Isso se observa de maneira clara e inconfundível, principalmente nos Estados ocidentais modernos, em que larva uma espécie de “guerra civil”, tantos são os conflitos entre as várias classes e setores da sociedade, sem que o Estado possua força para dominá-los ou sequer controlá-los.

O Estado assiste, quase impotente, ao permanente choque entre empresários e trabalhadores; entre civis e militares; entre proprietários e não-propietários ou “sem-terra” e inquilinos. A situação adquire tal gravidade que já se pode dizer que o Estado não tem mais o monopólio da violência. Ao lado (ou acima) do Estado atuam as forças econômicas, o poder dos meios de comunicação e a Igreja Católica que num País como o nosso, especialmente, exerce influência decisiva em todos os setores da sociedade, ficando isto mais do que comprovado por pesquisa publicada pela Imprensa, logo após a promulgação, mostrando que o grupo de pressão que teve a maior parte de suas emendas aprovadas pelos constituintes, compondo, por conseguinte, a Constituição de 1988, foi a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

Conforme observa Löwenstein, “a variedade de tais influências extraconstitucionais no processo do poder escapa a qualquer classificação. Em nossa sociedade tecnológica de massas surgiu um novo tipo de “detentores invisíveis do poder”, na forma de grupos pluralistas e grupos de interesses que dominam os meios de comunicação de massa. A infiltração e configuração do processo político através dos grupos pluralistas e de suas vanguardas – os grupos de pressão e os “lobbies” – é talvez, em comparação com outros tempos, o fenômeno político mais significativo da moderna sociedade de massas” (Teoria da constituição, Editorial Ariel, Ed. 1986, p. 37).

Essas forças sociais exercem permanentemente um poder de fato dentro do Estado, razão por que o governo, hoje em dia, consiste, na realidade, em procurar estabelecer um equilíbrio entre essas diferentes áreas de influência, para garantir “o livre desenvolvimento da personalidade humana”.

Isso se nota nitidamente no Brasil atual, onde o tema da moda é privatização. Se não, vejamos:

  1. O Estado mostra-se incapaz de assegurar a segurança pública, que é entregue cada vez mais a empresas privadas. Recente reportagem num dos grandes jornais do País anuncia a existência de cerca de 450 mil homens atuando nas diversas empresas de vigilância.
  1. O Estado não tem mais condições de oferecer educação e saúde ao povo. Essas atividades estão sendo transferidas, a todo galope, às empresas privadas.
  1. O Estado entrega às empresas privadas a tarefa de construção de estradas e sua manutenção; cede suas ferrovias e a exploração do transporte marítimo a empresas privadas.
  1. O Estado prepara-se para transferir às empresas privadas todo seu setor de telecomunicações.

E, “the last but not the least”, o Estado brasileiro mostra-se sem condições de enfrentar o problema do desemprego. Lembro-me muito bem que, atormentado pela massa de desempregados, naquela época, Getúlio Vargas, aconselhado pelos economistas de então, anunciou um vasto programa de criação de empresas estatais, destinadas a explorar nossas riquezas e criar condições de trabalho principalmente para a população jovem.

Alegavam os defensores da idéia, que imposto era também “poupança pública”, e o dinheiro poupado compulsoriamente, dessa forma, deveria ser investido em benefício da sociedade, através da expansão do mercado de trabalho, com a criação de novas fontes de riqueza. Acentuavam que a iniciativa privada não dispunha de condições de atender à imensa demanda, que crescia em progressão geométrica, havendo risco de se criar uma situação perigosa até mesmo para a segurança nacional.

Hoje o Estado, além de não criar mais nenhuma empresa, confessando-se incapaz para gerí-las, ainda aliena as que possui, à iniciativa privada.

Como se não bastasse o que já transferiu e se acha em vias de transferência, ainda se cogita da criação de “Tribunais privados”, aos quais seria confiada a solução dos conflitos e distribuição da Justiça.

Vislumbra-se, sem dúvida alguma, nos umbrais do amanhã, uma nova ordem social, com um outro tipo de unidade política que sucederá o Estado.

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