Medidas provisórias

A instituição das chamadas “medidas provisórias” foi uma novidade criada e introduzida no nosso regime jurídico, pela Constituição de 1988.

Senão, vejamos.

A Constituição de 1824 dispunha em seu artigo 53 que, “o Poder Executivo exerce por qualquer dos Ministros de Estado a proposição, que lhe compete na formação das Leis; e só depois de examinada por uma Comissão da Câmara dos Deputados, aonde deve ter princípio, poderá ser convertida em Projeto de Lei”.

Os Imperadores D. Pedro I e D. Pedro II não gozavam, portanto, desse poder excepcional e extraordinário de criarem leis, a seu puro arbítrio, sem qualquer manifestação do Poder Legislativo.

Derrubada a monarquia e proclamada a República, a Constituição de 1891 atribui ao Presidente da República competência privativa para “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis e resoluções do Congresso; expedir decretos, instruções e regulamentos para sua fiel execução” (art. 48).

Sua clareza dispensa comentários – só ao Congresso Nacional cabe fazer leis (art. 34). Ao Executivo cabe, apenas, regulamentá-las.

A Constituição de 1934 continua no mesmo diapasão e delimita expressamente a competência do Presidente da República em “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, e expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução” (art. 56).

Foi com fechamento do Congresso e de toda espécie de Poder Legislativo (Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores) em todo o País, que o Presidente Getúlio Vargas implantou a ditadura e outorgou a Constituição de 1937, dispondo:

“O Presidente da República, nos períodos de recesso do Parlamento ou de dissolução da Câmara dos Deputados, poderá, se o exigirem as necessidades do Estado, expedir decretos-leis sobre as matérias de competência legislativa da União, excetuadas as seguintes: a) modificações à Constituição; b) legislação eleitoral; c) orçamento; d) impostos; e) instituição de monopólios; f) moeda; g) empréstimos públicos; h) alienação e oneração de bens imóveis da União” (art. 13).

E, mais ainda:

“O Presidente da República, observadas as disposições constitucionais e nos limites das respectivas dotações orçamentárias, poderá expedir livremente decretos-leis sobre a organização do Governo e da administração federal, o comando supremo e a organização das forças armadas” (art. 14).

Foi aí que apareceram os famigerados decretos-leis, tão criticados pela doutrina, e que passaram a ser utilizados indiscriminadamente durante todo o período em que o Congresso permaneceu fechado, sufocada a representação popular sob o peso das armas.

Em 1945, deposto o Presidente Getúlio Vargas e restabelecida a democracia, o Congresso Nacional promulga a Constituição de 1946, que concede ao Presidente da República competência para “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis e expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução” (art. 87).

Os legisladores-constituintes entenderam ser inteiramente incompatível com a Democracia, a concessão de tal direito ao Presidente da República, ainda mais que a ditadura só havia previsto tais direitos excepcionais para o período em que o Poder Legislativo estivesse fechado – e agora estava aberto e funcionando normalmente.

Em 1964, dinamitada a ordem jurídica e deposto o Presidente João Goulart pelas Fôrças Armadas, o “Comando Supremo da Revolução” assume o Poder constituinte, através da edição de “Atos Institucionais”, que na prática se sobrepunham à Constituição de 1946. Esse “Comando Supremo da Revolução, portanto, além de legislar ao lado do Congresso Nacional (que continuou funcionando), legislava à vontade sobre toda e qualquer matéria. Estava implantada a ditadura no País e, na realidade, retornávamos ao regime da Carta de 37.

A Constituição de 24 de janeiro de 1967 pretendeu restabelecer a normalidade constitucional, e, assim, estabelece taxativamente que, “compete ao Presidente da República, sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução” (art. 83, II). Acabou com os decretos-leis.

Teve, entretanto, vida efêmera. Eis que o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968 decreta o recesso do Congresso Nacional e preceitua: “Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios” (art. 2º, § 1º).

A Constituição de 1969, nessa mesma linha, já prevê os decretos-leis (art. 46, V), ressucitando essa sinistra figura jurídica desaparecida após o término da ditadura Vargas, dispondo que, “o Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, e desde que não haja aumento de despesa, poderá expedir decretos-leis sobre as seguintes matérias: I – segurança nacional; II – finanças públicas, inclusive normas tributárias; e III – criação de cargos públicos e fixação de vencimentos” (art. 55).

Com o restabelecimento da democracia, eis que a nova Constituição, aprovada pelos representantes do povo e promulgada a 5 de outubro de 1988, mantém o mesmo instituto, só que batizado com outro nome: “Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias. Parágrafo único – As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes” (art. 62).

Ressurgiram, assim, os “decretos-leis” da era Vargas, só que sob o rótulo eufemístico de “medidas provisórias”. Isto porque:

  1. a) São editadas torrencialmente, ilimitadamente, para assuntos irrelevantes e sem qualquer urgência;
  1. b) O Poder Executivo atua através de seus Deputados para que sua apreciação pelo Congresso seja protelada ao máximo, usando para isso de todos os expedientes regimentais possíveis (principalmente ausência dos Parlamentares do governo, para não darem quorum para votação). Quando o Congresso não se pronuncia sobre elas no prazo de trinta dias, são reeditadas. O Executivo interpreta que a Constituição não proíbe sua reedição. Há, assim, medidas provisórias editadas e reeditadas sucessivamente há anos.

O mais curioso é que tanto se canta em prosa e verso sobre a necessidade de “controle externo do Judiciário” e ninguém fala acerca do controle do Executivo e das medidas provisórias, que já deveriam ter sido suprimidas, há muito, de nossa Constituição. Ou, na melhor das hipóteses, só admissíveis no Estado de sítio.

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