Mundo virtual

O choque incontestável entre o irrealismo da estrutura legal que, pode-se dizer, vive em um mundo de ficção, e a vida real, resulta em comportamentos estranhos e divergentes entre os membros de um mesmo sistema.

Assim, o Delegado não abre o “competente” inquérito em cerca de 70% dos casos a ele submetidos, porque, embora se trate de crimes de “ação pública incondicionada”, revelam-se irrelevantes.

A propósito, pesquisas realizadas e publicadas na imprensa mostram que no ano passado a Delegacia de Homicídios de Recife registrou 730 ocorrências. Destas, apenas 125 se transformaram em inquéritos e foram enviadas para a Justiça, o que corresponde a apenas 17% do total. No mesmo período, a Delegacia de Roubos e Furtos registrou 2.160 ocorrências que se transformaram em 649 inquéritos ou 30% do total”.

Depois do Delegado, chega a vez do Promotor que, por seu lado, não denuncia todos os casos que lhe vêm às mãos, ora por falta de provas, ora pela insignificância do assunto, que talvez faça parte do chamado “direito penal de bagatelas”. Neste caso, há o preenchimento do tipo penal, mas a ação não deve ser proposta, dada a ninharia do caso.

Feito esse peneiramento, e instaurada a ação penal com o recebimento da denúncia pelo Juiz (e ainda há denúncias que não são recebidas pelo Juiz, que as considera “ineptas”), surgem inúmeras hipóteses: o processo pode acabar com o réu sendo absolvido, ou então condenado; se condenado, às vezes o é a uma pena irrisória; é possível, também, que ocorra a prescrição, ou que o réu receba o perdão judicial ou o perdão do ofendido, etc., podendo se enquadrar em uma das causas de extinção da punibilidade previstas em Lei.

Com efeito, muitos Juízes (e Promotores) constatam, no decurso da ação penal, que estão frente a um processo inútil, sem importância, não sendo aconselhável mesmo o cumprimento da Lei, em benefício do acusado, da vítima e da própria sociedade. Por este motivo, e impossibilitados de agir de outra forma, preferem deixar o processo “de lado”, até ocorrer a prescrição.

O resultado dessa seleção – que começa com o Delegado e acaba nos Tribunais, na apreciação do último recurso possível – é que nem cinco por cento dos casos começados, isto é, que deram início a inquérito policial, resultam em condenação.

Vale ressaltar, porém, outro aspecto do sistema. Muitos condenados com sentença transitada em julgado, não cumprem a pena. Uns fogem, outros têm a pena prescrita. E muitos são “liberados” pelos chefes do estabelecimento prisional para onde foram enviados, integrando as fileiras dos designados vulgarmente de “presos-soltos”. Isto acontece mais frequentemente do que se pensa, seja porque o próprio Diretor da prisão sente a injustiça da condenação, por um fato “já superado”, ocorrido há muitos anos, seja porque ele vê no acusado apenas um elemento inofensivo, autor de estelionato ou crimes patrimoniais de pequeno valor, seja, enfim, porque o considera “recuperado”.

Este é o modo como opera “formalmente”, todo o sistema. Vale ressaltar que fazemos esses comentários de maneira ligeira e geral, sem ingressar nos limites do “sursis” e do livramento condicional, para os quais existe previsão legal.

Ao lado deste sistema, porém, atuam os mecanismos próprios da sociedade. Crimes sexuais, de apropriação indébita, furtos de empregadas domésticas ou de funcionários de supermercados e magazines, ofensas pessoais, injúrias, pequenas agressões, erros médicos e fraudes profissionais, constituem modalidades de delitos que já obtêm reparação através de “composição”, ou que, às vezes, acabam sendo perdoados por influência do Delegado, de membros da família, de líderes religiosos, de amigos comuns, etc.

Geralmente a ação desses “intermediários” pacificadores vai ao encontro dos interesses da própria vítima, que prefere uma “satisfação” imediata do que ficar eternamente “rendendo o caso”, aumentando a inimizade, com suas consequências naturais.

As vítimas estão cada vez menos interessadas na punição dos culpados, e isto acontece, entre outras razões, porque o Estado nunca se preocupou com elas.

Longe está aquela época em que Ferri, Garofalo e outros positivistas pediam a instituição de um fundo destinado a amparar as vítimas e suas famílias. Para eles, tal medida era importante, não apenas para o restabelecimento da paz social, como também para a prevenção de novos crimes.

Constou das Recomendações do XI Congresso Internacional de Direito Penal, realizado em Budapeste, de 9 a 15 de setembro de 1974 a indenização das vítimas dos crimes, indenização esta que foi considerada “tarefa de ordem pública”, a ser garantida pelo Estado.

A devastação causada pelo crime em nosso País, nos dias de hoje, talvez seja pior do que a provocada por uma guerrra: vidas e mais vidas são ceifadas, anualmente, em razão dos milhares de homicídios praticados. As estatísticas a esse respeito mostram números verdadeiramente assustadores, que fazem aumentar, ainda mais, o clima de insegurança existente.

Acontece que o Estado, além de não tomar medidas realmente preventivas para deter esta avalanche, ou para impedir o avanço deste verdadeiro exército de Átila sobre a população indefesa e desarmada, também não se preocupa com as vítimas que, sem assistência e desesperançadas, acabam, muitas vezes, por deixar a solução de seus problemas nas mãos de Deus.

Enquanto isso as “Escolas de Crime”, ou melhor, as “Faculdades do Crime” em que nossas prisões se transformaram, vão formando verdadeiros doutores especializados em tudo quanto é de maldade.

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