Resquícios

No dia 13 de dezembro de 1968 foi baixado, pelo Presidente Costa e Silva e seus Ministros, o Ato Institucional nº 5, fechando o Congresso e conferindo Poderes excepcionais ao Sr. Presidente da República para legislar.

Poucos meses depois o General Costa e Silva sofre um derrame cerebral e fica impossibilitado de exercer suas funções. Foi aí que no dia 31 de agosto de 1969 os três Ministros Militares assumiram o Poder. A partir de então, e até o dia 30 de outubro de 1969, o País foi governado pelos Ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica. Os três constituíam o Poder Executivo, como se fossem uma só pessoa. Era uma espécie de reedição da Santíssima Trindade: três pessoas numa só.

Eis que, no dia 1º de outubro de 1969, é baixado o Decreto-Lei nº 911, que diz textualmente:

“Os Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, usando das atribuições que lhes confere o artigo 1º do Ato Institucional n. 12, de 31 de agosto de 1969, combinado com o § 1º do art. 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, decretam: O artigo 68, da Lei n. 4.728, de 14 de julho de 1965, passa a ter a seguinte redação: A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário, com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal”.

Conforme se vê, esse Decreto-lei altera sumariamente a Lei 4.728 e cria a figura do “depositário” para aquele que compra carros, geladeiras e outros bens sob financiamento bancário, até o pagamento da última prestação, ou seja, até a liquidação total do seu débito.

E, por via de consequência, se o “depositário” não paga e não devolve o bem, é considerado, na forma da Lei, “depositário infiel”, sendo carregado, sem mais, para a cadeia.

Isso é o que se chama de “prisão civil”. Acontece que o cidadão trancado numa jaula, misturado com dezenas de criminosos que ali se encontram em “prisão penal”, não consegue distinguir uma coisa da outra. Seu consolo é que o carcereiro vai dizer-lhe: “Fique tranquilo e se considere muito feliz, porque você não está em prisão penal, mas em prisão civil”. E sai dando uma gargalhada mefistofélica.

Antes da edição desse Decreto, o indivíduo que comprasse a prestações ficava sujeito apenas à “responsabilidade civil”, ou seja, se não honrasse seus compromissos podia ser executado, e teria seus bens penhorados, até pagamento da dívida e acessórios. Essa execução poderia ser estendida também aos avalistas.

Após a edição desse Decreto a responsabilidade civil permanece íntegra, por completo: o devedor pode ser executado – e seus avalistas também. Mas acrescenta-se mais: poderá ir para a cadeia.

Muitas vezes, para evitar a prisão, o cidadão vende tudo que tem, ou pede emprestado a juros altíssimos (só que o agiota não pode colocá-lo na cadeia, porque aí a responsabilidade é apenas “civil”), ou, então, seus familiares e amigos se juntam para arrecadar dinheiro, de qualquer maneira, a fim de possibilitar ao “inadimplente” sair do “sufoco”.

Isso tudo faz parte da rotina da Justiça brasileira, com as cadeias já abarrotadas de processados por “responsabilidade penal”, tendo que mandar para lá, ainda mais, os da “responsabilidade civil”.

Essas coisas, por mais espantosas que sejam, hoje já não espantam ninguém. O que é espantoso – isso sim – é que desde a redemocratização do País, nos idos de 1983, aqueles mesmos democratas, que tanto deblateraram contra o chamado “entulho autoritário”, silenciam completamente no que se refere a essa excrescência, que permanece inalterada.

Diante de tantas injustiças que vêm sendo cometidas desde a edição desse Decreto-Lei (e a mera palavra “decreto-lei”, por si, não deixa de ser uma contradição, porque uma Lei não pode ser Decreto – tanto assim que a redemocratização apressou-se em mudar seu nome para “medida provisória”), só o Poder Judiciário tem procurado amenizar seus efeitos.

Com efeito, encontramos em recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça: “O devedor-fiduciante que descumpre a obrigação pactuada e não entrega a coisa ao credor-fiduciário não se equipara ao depositário infiel, passível de prisão civil, pois o contrato de depósito, disciplinado nos arts. 1.265 a 1.287, do Código Civil, não se equipara, em absoluto, ao contrato de alienação fiduciária” (Relator Ministro Vicente Leal – DJU-06/10/97 – pág. 50061).

Desgraçadamente, se há juízes que entendem nesse sentido, há outros que, ansiosos por colocarem “gregos e troianos” na cadeia, deixam o pobre infeliz mofando nas prisões até o processo chegar ao STJ.

O cidadão que é preso nessas circunstâncias, sai revoltado da prisão. E é daí que surgem os verdadeiros criminosos.

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